Flores e frutas que atraem passarinhos
Precisei de dois dias para entender que o vulto fugidio que eu via de relance na janela era uma curiosa rolinha — um macho, como soube meses depois, dada a plumagem azulada na cabeça. Era o terceiro mês em que eu colocava frutas num pratinho preso do lado de fora do vidro, no quinto andar de um prédio em frente a uma avenida barulhenta e movimentada.
Cansada de ver pedaços de mamão e banana voltarem intactos para a cozinha, eu tinha desistido de ofertar frutas ao passaredo. Numa última tentativa de ter um lampejo da infância no interior em plena metrópole, resolvi apelar: coloquei alpiste e esqueci o pratinho na janela.
“O” rolinha logo sucumbiu à tentação do novo cardápio: em pouco tempo, passou a me visitar toda manhã. Depois, trouxe o bando, e minha felicidade era quase a de ver o elefante mexer a tromba no zoológico.
Mais uma vez, tentei as frutas e os vultos encarnaram de vez. Surgiu uma maritaca, arisca como pensamento. Um bem-te-vi exibido, com sua casaca preta cobrindo o peito banana-ouro. E sanhaços, chupins, cambacicas, beija-flores e sabiás, nomes que eu descobria num livro de pássaros com a surpresa de quem recorda velhos amigos.
Em um ano, minha janela virou assunto no ponto de ônibus. Eu podia ver as pessoas apontando para meu andar quando, de manhã, ainda sonolenta, abastecia todos os pratinhos, bebedouros e bandejinhas. Mudei para o prédio vizinho e ganhei uma varanda. Os bicudos rapidamente atualizaram o plano de vôo. Cheguei a fotografar 29 maritacas se refestelando com sementes de girassol — do graúdo, me ensinaram elas, que é mais saboroso.
Uma vez por mês, ia ao Ceagesp e comprava 40 quilos de girassol, 20 quilos de painço, 4 cachos de banana nanica e 4 mamões formosas, os maiores possíveis. Me sentia a dona de um estranho restaurante vegetariano.
Meus dias se pareciam cada vez mais com os de meu avô, dono de um rancho em Piracicaba (SP), quando ela finalmente apareceu. Fui para a varanda e encontrei as vasilhas reviradas, as frutas esmagadas e a grade numa imundice. Só os grãos tinham acabado. Todos. Não havia um painço de testemunha. Olhei para a vasilha de água: empoleirada na borda, a menos de um metro de mim, uma pomba cinza me observava, a cabeça dando aquelas inclinadas rápidas e discretas que só os pássaros sabem dar. Fiz um gesto amplo com o braço para que ela fosse embora. Ela voou num meio círculo raso e pousou na grade, meio metro adiante.
Não consegui manter a intrusa longe e, na velocidade das notícias ruins, logo meu marido soube da pomba. E a vizinha de baixo. E a síndica. Antes que o assunto virasse pauta da reunião de condomínio, suspendi todas as vasilhas e deixei o passaredo na secura. Nem água eles tinham. Quase morri de dó vendo as jovens maritacas, o pescoço ainda desplumado, caminhando ansiosas pela grade, como que procurando uma passagem secreta para a mesa farta.
Passaram-se meses nisso, com as pombas – elas agora eram três – obstinadamente me visitando todo santo dia. A clientela que ainda vinha precisava se contentar com as flores de russélia e as jabuticabas e pitangas que, mal maduravam, já enchiam o bico da passarada. Até que, enfim, as pombas desistiram do meu restaurante.
Hoje, nenhum tipo de grão vai para os pratinhos, reabastecidos toda manhã com mamão, banana e, eventualmente, abacate. Os chupins desapareceram me deixando como pagamento uma linda pena negra, que guardei em uma caixinha. Com a suspensão da oferta de sementes de girassol, as maritacas rarearam e só umas cinco vêm comer frutas. Mas sabiás, beija-flores, sanhaços, bem-te-vis e cambacicas continuam fregueses.
Eu já consigo reconhecer seus filhotes adolescentes, tremelicando de ansiedade e fome enquanto os pais ainda lhes levam alimento ao bico, uma cena rara que, hoje sei, é mais que o elefante e sua tromba, é a girafa, o leão, a savana inteira.
Nos dias nublados, “o” rolinha aparece, fuça as vasilhas e bebe água. Pisoteia as frutas com desdém. Me lança um olhar maroto, na esperança de que eu tenha pena. Eu, claro, fico de bico calado.