Se flor tivesse cérebro, pensaria em sexo - 1/2

© Carol Costa/Minhas Plantas

Mal entrou na puberdade, ela só pensa naquilo. Uns argumentam que ainda é jovem, um botão em flor, mas isso nunca foi um grande problema para ela, que vem se preparando para desabrochar desde que era um brotinho. Apesar de ter criado raízes junto aos pais, ela sente que é hora de formar sua própria família e gerar seus rebentos. Para conceber as sementes dessa transformação silenciosa, a moça se insinua aos quatro ventos, ludibria os varões, lhes cria sugestivas armadilhas sexuais, promete um frenesi luxuriante, a dança do acasalamento. Se preciso, ela se vestirá de forma voluptuosa e se cobrirá com enganosos perfumes, tudo para deixar sua herança na terra – e, com sorte, gerar bons frutos no futuro.

Sob a ótica de uma flor, um jardim é uma grande bacanal. Cactos e ipês fazem. Trepadeiras, claro, fazem. A mais prosaica violeta e a rosa caríssima, fazem. Até mesmo as carnívoras, essas sádicas, fazem. De fato, assim que provaram o gostinho da coisa pela primeira vez, cerca de 145 milhões de anos atrás, 415 milhões de anos depois de a primeira alga verde galgar terra firme, as plantas logo perceberam que o sexo poderia lhes trazer benefícios sobre suas irmãs virginais. E, desde então, se tornaram verdadeiras profissionais do ramo.

À primeira vista, pode parecer desnecessário que uma flor se transforme em uma rameira assim, a olhos vistos. Isso porque, como acontece com a maioria das plantas, as flores costumam ser hermafroditas: um mesmo indivíduo tem tanto um ovário, sua porção feminina, quanto grãos de pólen, pequenas estruturas que encerram os gametas masculinos. A reprodução sexuada, que leva o pólen até o ovário, não deveria, portanto, demandar tanta energia sexual. No entanto, uma flor só se entregará ao solitário prazer da autofecundação se estiver, digamos, muito necessitada.

A explicação para essa quedinha pela safadeza é bem simples. Um vegetal que se autofecunda cria descendentes geneticamente idênticos à mãe, perdendo a variedade genética que o ajudará a viver num mundo competitivo e hostil. Portanto, como não podem sair do lugar para um troca-troca, as flores recorrem à ajuda de aves, insetos ou pequenos mamíferos — os polinizadores — para misturar seu material genético ao de outra flor.

O mais cândido vasinho de orquídeas esconde um arsenal de estratégias libertinas dignas de constar não de um compêndio de botânica, mas, sim, das páginas de Os 120 Dias de Sodoma. Com algo entre 24 mil e 35 mil espécies espalhadas por todas as partes do mundo, com a exceção da Antártida, as orquídeas são a mais numerosa família de floríferas e as maiores peritas em dissimulações em busca de favores sexuais. Para atrair o polinizador certo, uma orquídea é capaz de se tornar irresistível, perfumada e saborosa para um bicho enquanto para todos os outros animais não passa de uma planta sem graça, às vezes até mesmo repulsiva.

O Cymbidium serratum<,em>, uma orquídea nativa da China, tem cor e sabor absolutamente inexpressivos — a menos que você seja um camundongo da espécie Rattus fulvescens, que se alimenta de pétalas da flor em troca de arrastar seus grãos de pólen de um lado para o outro. O que parece um ato masoquista à primeira vista é, na verdade, uma sofisticada estratégia de reprodução, que garante ao Cymbidium serratum trocar material genético de duas plantas diferentes, às vezes situadas a quilômetros de distância uma da outra.

Para alegria de botânicos e jardineiros, essas estratégias sexuais podem ser muito menos sacrificantes para a planta — ainda que frustrem o polinizador na maior parte das vezes. Conhecido por suas flores de aspecto bizarro, que cheiram a carniça, o gênero Bulbophyllum oferece às moscas-varejeiras a ilusão de que encontrarão ali um pouco de matéria orgânica em decomposição onde possam depositar seus preciosos ovos. Atraídos pelo cheiro, os insetos pousam na flor só para notarem, surpresos, que sofreram um embuste. Enquanto passeiam aturdidos pelas pétalas da orquídea, eles acabam esbarrando nos grãos de pólen, que se aderem às suas patas, prontos para ganhar os céus em busca de outro sagaz Bulbophyllum. O mesmo faz a flor-pelicano, Aristolochia grandiflora, uma prima da magnólia e do abacateiro, com o requinte de prender o polinizador curioso em uma armadilha de pelos e só soltá-lo após satisfazer seus desejos libidinosos.

As orquídeas do gênero Coryanthes vão ainda mais longe. Usando apenas a luz do sol, um pouco de água e nutrientes dispersos no ar e no solo, as flores da Coryanthes criam engenhosas armadilhas para os machos da abelha Euglossini, seus insaciáveis visitantes. Uma pétala foi modificada para ficar lisa e côncava como um copo de vidro. Para impedir a abelha de voar, a flor tem glândulas que secretam água e óleos para dentro do copo, formando uma “piscininha” na qual os insetos, invariavelmente, acabam caindo. Com as asas encharcadas e sem poder escalar a flor internamente, as Euglossini são obrigadas a fugir da morte pela única parte seca acessível da planta — exatamente o canal que leva aos grãos de pólen.

Mecanismo ainda mais sofisticado usam as Ophrys, conhecidas popularmente por erva-mosca, orquídeas-abelhas ou orquídeas-aranha, dependendo da espécie. As flores desse gênero europeu surgem no alto de longas e finas hastes, que as destacam da mata rasteira em redor. Com uma penugem negra ou castanha que imita os padrões gráficos do abdômen das abelhas ou vespas que as polinizam, as flores de Ophrys, não satisfeitas em simplesmente parecer um inseto, ainda produzem ferormônios idênticos aos exalados pelas fêmeas de seus polinizadores. Balançando suavemente ao vento, elas praticamente acendem a luz vermelha e abrem a porta da alcova para os machos excitados. Eles rapidamente se atracam com as flores, mas seu frenesi dura poucos segundos, até que os desolados insetos notem o engano e desapareçam — levando consigo os ladinos grãos de pólen.

Apesar de todas essas ardilosas estratégias para evitar a autopolinização, não trocar material genético com outra planta pode ser muito útil. Em um ambiente com quantidades ideais de luz e clima, uma violeta-africana produz flores no alto de hastes longas, boas para atrair a atenção de insetos. Curiosamente, se notar que as condições para florescer estão prejudicadas — o clima ficou frio ou quente demais, por exemplo —, a mesma violeta pode gerar flores de haste curta, que ficam escondidas pelas folhas e se autofecundam ainda em botão. Nesse caso, o alerta que vai determinar a modalidade do sexo é dado por proteínas e cloroplastos, estruturas celulares especializadas, que registram, entre outras coisas, alterações na intensidade da luz solar ou na quantidade de horas de escuro. “Uma planta é capaz de perceber mudanças mínimas na oferta de nutrientes ou mesmo detectar que os dias estão ficando mais curtos e, portanto, o inverno está chegando”, explica o biólogo Thales Kronenberger, especialista em biologia molecular e parasitologia.

*Primeira parte da versão original do texto publicado na revista Superinteressante de março de 2013. Leia a segunda parte aqui.

postado em 28/12/2012 - Leia mais
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